Texto CTR PT

INTRODUÇÃO


Da perspectiva da Composição em Tempo Real, o gesto criativo não pode resultar de uma intenção ou projeção pessoal. Tem que ser a consequência de um encontro. Um encontro com um tempo, um espaço, um outro, uma coisa, um afeto... A força desse encontro, a sua importância e influência, é diretamente proporcional à capacidade que este tem para suspender a nossa trajetória, por milésimos de segundos que sejam, e gerar a dúvida, o espanto.

A Composição em Tempo Real dá-nos as ferramentas necessárias para prolongar o tempo de abertura dessa brecha e assim, adiando a resposta, formular a pergunta que nos inquieta. É essa suspensão que nos possibilita manter a equidistância entre inquietação e situação para assim descobrir, no meio do ruído, do excesso e do desperdício que nos rodeia, aquilo que de facto nos afeta, nos toca e nos move. O treino incide exatamente neste ponto: na capacidade que temos de adiar a resposta e, simultaneamente, não deixar o tempo passar, não perder o tempo, não perder tempo... Ou seja, na capacidade que temos de suspender o tempo em vez de nos imobilizarmos perante ele.

O maior desafio da Composição em Tempo Real é ativar a capacidade de nos olharmos de fora enquanto o acontecimento se desenrola e se oferece. Ao ganharmos distância, mesmo enquanto somos “matéria” (sobretudo enquanto somos “matéria”), reparamos em detalhes e relações que nos passariam completamente “ao lado” se dependêssemos exclusivamente dos nossos padrões habituais de percepção, possibilitando o acesso a novas formas de nos tornarmos sensíveis ao mundo. 






APRESENTAÇÃO 

O modo operativo da Composição em Tempo Real

A prática do método de Composição em Tempo Real desenvolve-se em estúdio a partir de um dispositivo de jogo extremamente simples, com um enquadramento espacial bastante claro (um "dentro" e um "fora") e temporal (um "antes" e um "depois"). No início, os participantes encontram-se “fora” do espaço de jogo e o trabalho começa exatamente a partir do momento em que a atenção dos participantes se concentra no espaço “vazio” da área de jogo. É esse olhar que dá início ao acontecimento. 

O trabalho propriamente dito, desenrola-se num “vai e vem” entre o espaço de “fora” e o espaço de “dentro”. Por isso, não existe nesta prática uma diferença hierárquica entre quem faz e quem observa, podendo o participante trabalhar intensamente sem nunca ter “feito” um único gesto. Na verdade a haver um objetivo com este trabalho será o de dotar o praticante da capacidade de se observar enquanto faz e de fazer enquanto observa.

O modo de operação básico consiste na aplicação de um conjunto de princípios e regras, numa lógica cumulativa e circular, só interrompidas por momentos de feed-back cirúrgicos e intensos - sendo este um instrumento central no processo de transmissão. A condição prévia para que o trabalho seja bem sucedido é evitar ações reflexas e, por definição, precipitadas. A razão é simples: uma das principais ferramentas-conceitos deste método é o "reparar", que auxilia o praticante a desenvolver a capacidade para se ganhar tempo de forma a poder mapear uma situação, criar hipóteses de relação e, quando o tempo (real) chegar, decidir e agir. Numa situação em que o participante age por reflexo, por impulso, sem ter em consideração a situação em si, mas a sua própria vontade, a sua necessidade pessoal, esse tempo não existe. Por isso, grande parte do treino consiste em praticar a “espera”, o "reparar", o “não saber”... e o "saborear". 





SISTEMA OPERATIVO

Exemplo prático

Se na zona de jogo alguém colocar uma cadeira no centro do espaço, essa cadeira “ainda não é” nada (nem mesmo uma cadeira), até que uma segunda ação lhe dê uma função/direção. Até uma segunda ação lhe dar “um passado”. E isso, independentemente da razão que levou a primeira pessoa a colocar a cadeira no espaço. Ou seja, neste "espaço de potência" do laboratório, a cadeira é ao mesmo tempo, uma cadeira e tudo aquilo em que ela se puder tornar. É um objecto em aberto.

Se, num segundo tempo, alguém se sentar na cadeira é porque a nossa “suspeita” de que se tratava de uma cadeira, confirma-se.


Mas se em vez de se sentar, colocar duas cadeiras ao lado da primeira, a primeira cadeira não deixa de ser uma cadeira, mas essa informação passa para segundo plano, e o que se torna saliente é o facto de se estar perante três objetos (que calham ser cadeiras) que se repetem.


Ainda nesta linha de pensamento, mas um pouco mais complexo, se a segunda cadeira colocada não for igual à primeira mas, por exemplo, um sofá, a ideia de repetição passa para um segundo plano, para se tornar saliente o facto de se estar perante uma seriação de objetos distintos com a mesma função. E assim por diante.

Em qualquer dos casos, o acontecimento confronta-se com a expectativa que temos sobre ele e, dependendo da segunda ação, a história tem que ser reescrita retrospectivamente. É exatamente por isso que a clareza desta segunda ação é crucial para o desenrolar e o desdobramento do acontecimento. Ela tem que se “referir” a um aspecto muito preciso da imagem, para que esse “novo” sentido se revele. Se pensarmos numa linguagem cinematográfica, essa precisão, essa lucidez que o método procura, é o que possibilita a sessão de continuidade que encontramos numa montagem com raccord na junção entre duas imagens distintas. Em Composição em Tempo Real, a única forma de se manter o “raccord” entre duas imagens, é aceitar e incorporar retrospectivamente que uma formulação do tipo “três objetos iguais” é substancialmente diferente da formulação “três objetos com a mesma função”. Essa diferença aparentemente mínima na formulação é, no método de Composição em Tempo Real, de extrema importância.